Baratas e bichos selvagens: como ônibus atolado salvou viajante na Amazônia

Paulista Danilo Couto se abrigou dentro de um ônibus abandonado em maio de 2018 em um dos trechos mais complicado de sua viagem de moto pelas três Américas
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Por UOL
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Divulgação

Em abril de 2018, cerca de 20 passageiros foram resgatados pelo Exército de um ônibus atolado na BR-319, no interior do Amazonas.

Os ocupantes do coletivo estavam presos no meio da selva havia uma semana, passando fome e sede, após a viagem de Manaus (AM) a Porto Velho (RO) ser interrompida devido às péssimas condições da estrada – agravadas pelo período de chuvas.

A maior parte da BR, conhecida como “rodovia fantasma” e que tem quase 900 km de extensão, até hoje não é pavimentada.

No mês seguinte, o ônibus ainda aguardava pela remoção e acabou servindo de refúgio para o brasileiro Danilo Couto, que percorreu 115 mil km em viagem de moto pelas três Américas, que atravessou 17 países e durou de 2017 a 2020.

Natural de Rio Claro, no interior paulista, Couto relata que o ônibus o salvou do risco de ataques de animais selvagens e outras ameaças em um dos trechos mais complicados da jornada que empreendeu sozinho, pilotando uma Yamaha Ténéré 250.

Ele é dono do canal Moto Mochila Brasil no YouTube, onde relata os perrengues que encarou, as amizades que fez e os lugares remotos que conheceu.

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Danilo Couto viajou de moto por mais de 115 mil km pelas três Américas entre 2017 e 2020.

“Eu já sabia que a BR-319 era quase intransponível naquela época do ano. Além das dificuldades do terreno não pavimentado e dos animais ferozes e famintos, havia também a preocupação com o isolamento e a falta de comunicação e assistência”, relata o aventureiro.

Mesmo sabendo de tudo isso, decidiu encarar a travessia de aproximadamente 700 km, partindo da capital amazonense, para chegar a Humaitá, no sul do Estado, e então rumar para os próximos destinos da viagem.

No segundo dia da empreitada, quando pilotava rumo à localidade de Rio Novo, veio o prenúncio de que os desafios estavam só começando. Após uma queda, o jeito foi trocar os pneus pelos lameiros que carregava na bagagem com a ajuda de alguém que encontrou pelo caminho.

Ao seguir em frente, as coisas ficaram ainda mais complicadas.

Busão salvador

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“A estrada começou a ficar horrível. Metros e metros de valas de lama, alagamentos e muito barro liso. Atolei pelo menos três vezes quando o cansaço veio e tive um tombo em que a moto ficou embaixo da lama. Eu não conseguia levantá-la sozinho de jeito nenhum. Ia começar a tirar a bagagem para deixar a moto mais leve, quando vi no horizonte distante um ônibus”.

Danilo deixou a Ténéré e correu até o veículo, constatando que estava vazio. Ele retornou à motocicleta e, algum tempo depois, foi socorrido, mas já era noite.

Ainda restavam cerca de 60 km para chegar ao destino planejado para aquele dia, algo que levaria entre três e seis horas, dadas as condições precárias da pista. Foi então que decidiu ficar ali mesmo.

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“A ideia de passar a noite tentando tirar a moto de atoleiros e buracos, cair e ficar a esmo sem luz, sem forças e com animais noturnos à espreita me estressava, e muito. Estava com medo e quase em pânico. Minha salvação era o ônibus abandonado”.

Couto foi até o coletivo e percebeu que a porta estava trancada por dentro. Após tentar quebrar um vidro, voltou à entrada e viu que ela estava presa com uma corda. Com um facão, conseguiu cortá-la para, aliviado, garantir um teto, passar a noite e descansar.

“Eu estava coberto de lama, mas, de certa forma, extremamente feliz. Temia me deparar com uma cobra lá dentro, mas só achei alguns restos de comida, roupas e objetos abandonados. Tranquei a porta com uma corda, deitei e dormi facilmente até ouvir o barulho das mil baratas por todos os cantos, que roíam os restos de alimentos”, recorda.

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Faltavam cerca de duas horas para amanhecer e o jeito foi esperar na completa escuridão, ouvindo o som noturno da floresta.

Somente ao amanhecer, ele se deu conta de que o ônibus era o mesmo que tinha permanecido preso durante uma semana, com os passageiros em situação precária – conforme tinha visto alguns dias antes no noticiário local.

Danilo, então, tirou o barro do corpo em um igarapé, abandonou a bagagem desnecessária e seguiu viagem, por volta das 6h.

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Ele levaria mais três dias para finalmente chegar a Humaitá, com muita dificuldade, diversos tombos e o auxílio de moradores e outros viajantes. Como ficou muito tempo sem qualquer tipo de comunicação, sua família, preocupada, chegou a acionar a polícia à sua procura.

Com o saldo de feridas nos pés, um tornozelo torcido, cortes nas mãos, retrovisor e para-lama quebrados, ele havia conseguido atravessar boa parte da “rodovia fantasma” e sair vivo para contar a história.

“Aprendi muita coisa nesse trajeto e a principal foi conhecer meu limite e amar ainda mais as pessoas, a família e os verdadeiros amigos. Foi um grande balizador para os desafios seguintes da minha viagem”, conclui.

Governo federal anuncia obras na BR-319

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Inaugurada na década de 1970, BR-319 liga Manaus a Porto Velho e maior parte dela ainda não está asfaltada

O relato de Danilo remete ao “Magic Bus”, ônibus abandonado no Alasca (EUA) retratado no filme “Na Natureza Selvagem” (2007), que virou uma espécie de santuário dos mochileiros.

De acordo com o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes), administrador da BR-319, o coletivo já não está mais na estrada.

A Associação dos Defensores e Amigos da BR-319, por sua vez, informa que o veículo saiu do atoleiro alguns dias após Couto passar a noite ali.

A entidade afirma que o trecho onde o atolamento aconteceu está “trafegável” atualmente.

Em setembro, o Ministério da Infraestrutura anunciou que irá reconstruir 52 km da rodovia entre os quilômetros 198 e 250, incluindo “novos dispositivos de drenagem e recuperação de áreas degradadas”.

O ministério informa que, atualmente, os primeiros 198 km e os últimos 164 km da BR-319 estão pavimentados e ” contam com contratos de conservação e de manutenção”. O passo seguinte será asfaltar o “Trecho do Meio”, com 405 km de extensão, diz o órgão federal.

“Nosso plano é de que, em 2022, tenhamos toda a extensão da rodovia 319 contratada e em serviços. Aí, será uma questão de tempo para entregá-la toda pavimentada”, disse em setembro Tarcísio Gomes de Freitas, ministro da Infraestrutura.


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