A despedida do Flecha Azul

Fonte: Revista Auto Esporte Matéria / Texto: Julio Cabral Li Fotos: Rafael Munhoz Test drive como passageiro pode não animar a maioria dos jornalistas automotivos. Menos quando essa carona oferecida ...

Fonte:
Revista Auto Esporte

Matéria
/ Texto: Julio Cabral Li

Fotos:
Rafael Munhoz
mun 6489Test drive como passageiro pode não animar a maioria dos
jornalistas automotivos. Menos quando essa carona oferecida diz respeito a algo
muito especial. Nesse ponto, o convite para andar na primeira viagem de
despedida do Flecha Azul da Cometa era imperdível. Quando eu morava em Belo
Horizonte, cheguei a fazer algumas viagens para o Rio de Janeiro nesses ônibus,
mesmo tendo a opção de viajar em outro mais moderno, provavelmente mais bem
conservado, mas despossuído de personalidade. Pode parecer burrice. Afinal, por
que não investir em uma viagem mais confortável ou com menores chances de
quebras? Talvez porque na minha cabeça era como chegar em um balcão de
aeroporto e me oferecerem a opção de viajar em um Lockheed Electra em lugar de
um Boeing ou Airbus novos. 

Essa escolha não era mais possível há quase dois anos,
quando os ônibus da CMA deixaram de cumprir suas rotas. Nem por isso ele foi
condenado ao ostracismo. O último exemplar produzido foi reformado pela Cometa
e, em vez de ser guardado no museu logo de cara, cumpriu uma série de 65
viagens. O melhor: trechos de linha com passagens pagas. Após a última delas
com passageiros de carreira, uma viagem Franca-São Paulo feita no dia 22 de
outubro, ele pode garantir no epitáfio a frase: “Partiu fazendo o que mais
gosta”. A derradeira viagem foi hoje em um trecho São Paulo-Campinas, incluindo
retorno, com passageiros escolhidos em sorteio pela própria Cometa. Depois
disso, o merecido descanso no museu.
Foi na primeira viagem dessa série que eu e o fotógrafo
Rafael Munhoz embarcamos no dia 24 de agosto no Terminal Tietê, em São Paulo. A
rodoviária é velho pano de fundo para esse ônibus. Ali na plataforma quatro, o
7455 resplandecia. Não é figura de linguagem para transformar aquele momento em
algo lírico para você, leitor. O Flecha Azul brilhava e refletia tudo à sua
volta na carroceria de duroalumínio rebitado ultrapolido.

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O BUSÓLOGO FÁBIO RECEBEU DO MOTORISTA ERNESTO A PEQUENA RÉPLICA DO FLECHA AZUL; UMA DA SÉRIE DE 65 viagens FEITAS PARA A DESPEDIDA (FOTO: RAFAEL MUNHOZ/AUTOESPORTE)

Não era o único ponto em que ele entregava ser algo à
parte. Se fosse um carro clássico, seria um restomod, restauração misturada com
atualização. Basta bater o olho para notar os vidros selados e destino
iluminado por leds. O esquema de iluminação é repetido na escada banhada no tom
azul-boate. Para arrematar a certeza de que esse não é um Flecha Azul
tradicional, um adesivo na carroceria indica que há… Wi-Fi!
Todas essas modernidades podem parecer heresias diante
do desenho dos anos 1950. Mas não passa de impressão. O CMA Flecha Azul é
retrô. O jeitão engana – o ônibus foi lançado há “apenas” 30 anos. Desde 1983
teve oito séries e 2.054 unidades produzidas. Ao olhá-lo por fora, poucos
adivinhariam que esse é de 1998, e não de 1958.
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A impressão se justifica pelo jogo de cena ultrapassado.
Andar nele é como se você estivesse em um episódio de Mad Men, nos anos 1960,
só que sem fumaça de cigarro ou chapéus. Até a pintura mudou para o padrão
antigo. Além da combinação creme e azul, inspirada em um jogo de chá usado pelo
antigo dono da Cometa, Tito Mascioli, as poltronas vermelhas são parecidas com
as originais. Claro que, em uma viagem coalhada de busólogos, nada escaparia
aos olhos desses apaixonados por ônibus. Logo alguém tascou: o revestimento não
é mais de couro e sim de uma imitação ecológica. Pois é, os Flecha Azul tiravam
onda nas plaquinhas no espaldar das cadeiras com a inscrição “couro legítimo”.
Outro sinal dos tempos.

Na época, o requinte tinha alvo certo: competir com os
voos daqueles Electras e outros aviões da Ponte Aérea Rio-São Paulo, criada em
1959 pela Varig, Vasp e Cruzeiro do Sul. Seus antepassados concorriam com
aeronaves e outras viações, e essa rivalidade chegou aos anos 1980. É como fala
uma moça em uma propaganda da Cometa de 1986: “É um verdadeiro avião”. Por isso
mesmo, esses serviços chegaram a contar com rodomoças que usavam um look à comissária
da Panair. Ele nasceu com a missão de cumprir longas pernas.
American Way of Life
Para enfrentar os rivais, o estilo não poderia ser
acanhado. A estampa lembra os antigos ônibus norte-americanos da GMC usados
pela Greyhound. Eles faziam sucesso na época em que a empresa surgiu como
Auto-Viação São Paulo-Santos, até ser comprada por Mascioli, que mudou o nome
para Cometa em 1948. Foi justamente quando a importação dos GMC não foi mais
possível que a Cometa partiu para modelos nacionais da Ciferal (Comércio de
Alumínio e Ferro). Mas se o negócio era se destacar perante as demais, por que
não fazer um ônibus próprio? Foi assim que surgiu o Ciferal Dinossauro lançado
no Salão de São Paulo de 1972. Era leve, graças à carroceria que misturava
metade da tabela periódica, feita em duroalumínio, liga que une alumínio,
cobre, magnésio, manganês e silício.
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Claro que não era apenas uma questão de desempenho. Como
eram mais leves, gastavam menos combustível e poupavam a mecânica, de motor e
transmissão aos freios. A própria Cometa emprestou dois GMC para ajudar a
Ciferal a se inspirar. Virou símbolo da companhia. Por isso mesmo, quando a
Cometa decidiu fazer o seu ônibus, fabricado pela companhia própria CMA
(Companhia Manufatura Auxiliar), o projeto manteve viva a linhagem dos
Dinossauros, incluindo o chassi Scania – K113CL no caso do 7455.
Jornada
Antes de nos despedimos da plataforma foi feito o
sorteio de uma miniatura do ônibus (será uma para cada viagem). O sortudo foi o
Fábio Henrique, de 18 anos, que veio com o amigo Franciel Souza. “Viemos lá de
BH só para andar nele”, afirma Fábio. Viajar muito para ver um modelo de ônibus
ou fotografar raridades em uma rodoviária é algo comum para os busólogos. Em
quatro anos de paixão, os rapazes já foram até Curitiba.
Logo após me aboletar na confortável poltrona, noto que
a visão dos passageiros não é obstruída pelas colunas. Lembra daquele cheiro de
ônibus antigo? O Flecha Azul não tem, porque o 7455 marcava só 500 km rodados.
O ambiente é plácido, as janelas seladas mal deixavam ouvir o motor Scania
DSC11 de 11 litros e 360 cv, que trabalha desestressado para levar 10.500 kg.
Uma pluma perto das 16 toneladas de alguns ônibus atuais. Mesmo com o ressalto
no teto, o corredor é baixo – com 1,84 metro, eu encostava a cabeça. Para
embalar o sono, o rodar é macio e sem molejo.
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ANDERSON TORQUATO CHEGOU A SER MOTORISTA DA COMETA. AGORA, ALÉM DE UM ACERVO HISTÓRICO, TEM SEU PRÓPRIO FLECA AZUL LEITO (FOTO: RAFAEL MUNHOZ/AUTOESPORTE)

A 120 km/h, o motor gira a tranquilas 2.500 rpm, mas
pode ir além. “Com o diferencial mais longo, ele chega a 150 km/h”, garante
Anderson Torquato. “Por isso mesmo eram muito usados depois de vendidos pela
Cometa para fazer viagens para o Paraguai”, completa. Ex-motorista do modelo, o
mineiro foi até São Paulo acompanhar a viagem. Embora não tenha ganhado a
miniatura, tem seu próprio Flecha Azul em escala 1:1, um modelo leito usado na
sua transportadora. Sim, os Dinossauros e seus descendentes ainda rodam por aí.
Nas duas paradas, mais tietagem. No acostamento, alguns
já esperavam com câmeras em punho. Por isso, os intervalos levaram o dobro do
precisto. O motorista Marcos Ernesto está preparado para o assédio. “Quando
fomos chamados, já avisaram que seria assim”, diz. Ernesto e outro colega são
os únicos autorizados a dirigir esse Flecha Azul. Os outros não podem nem
manobrar. Pergunto a ele como é o “show de luzes”, aquela brincadeira que
faziam iluminando as setas de um lado e de outro intermitentemente. Ele hesita
e depois fala marotamente: “Basta jogar a alavanca de seta duas vezes para um
lado e duas para o outro em seguida, segurando depois”. É só mais um detalhe
que vai deixar saudade nesse ônibus.

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OS BANCOS SÃO REVESTIDOS POR MATERIAL ECOLÓGICO, E NÃO MAIS COURO LEGÍTIMO COMO ANTIGAMENTE (FOTO: RAFAEL MUNHOZ/AUTOESPORTE)

Na rodoviária de Belo Horizonte, uma multidão esperava o
Flecha Azul que, sem vergonha, exibiu o seu motor aos curiosos. Alguns deles
até embarcaram para dar uma voltinha até a garagem da Cometa só para ter o
gostinho. E, sinceramente, viajando no ônibus mais moderno que nos trouxe de
volta, já bateu saudade daquele último dos Dinossauros.