Impérios e sucatas à margem da lei

Fonte: Abrati O patrão tem mais uns dez ônibus desses em tudo quanto é lugar”, informa o funcionário responsável pela venda de passagens em uma das inúmeras agências que operam com ...
Fonte: Abrati
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O patrão tem mais uns dez ônibus desses em tudo quanto é lugar”, informa o funcionário responsável pela venda de passagens em uma das inúmeras agências que operam com ônibus clandestinos no Brás, bairro localizado no lado Leste de São Paulo, próximo ao centro histórico da cidade. É véspera de um feriado prolongado. O Brás já foi um dos bairros paulistanos mais característicos, abrigando boa parte dos imigrantes que vinham para a Capital. A colônia italiana o elegeu como um dos seus preferidos. Leiam mais aqui!

O Brás já foi próspero. Abrigava pequenas e grandes empresas de imigrantes ou de brasileiros natos e teve papel importante no processo de desenvolvimento de São Paulo desde meados do século XIX. Hoje, está degradado. Nas ruas estreitas e cheias de lixo próximas do Largo da Concórdia — um logradouro que também já teve seus dias de charme — vêem-se mendigos, camelôs, comerciantes informais, traficantes e consumidores de drogas, caminhões descarregando todo o tipo de carga. Também se pode ver como é forte a atuação das agências de transporte rodoviário clandestino de passageiros. Elas não têm a preocupação de se esconder. Em duplas, policiais militares passam por ali, mas provavelmente entre suas funções não está a de coibir a atuação ilegal dos transportadores piratas de passageiros.
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A informação do vendedor de passagens evidencia o que fiscalizações e apreensões de veículos feitas pela ANTT — Agência Nacional de Transportes Terrestres — e pela Polícia Rodoviária Federal também constatam: o transporte rodoviário clandestino de passageiros não é uma atividade feita por amadores, pessoas que perderam seus empregos, compraram um ônibus velho com o dinheiro do Fundo de Garantia e decidiram se arriscar no ramo. Na verdade, o esquema dos piratas é muito amplo e esconde verdadeiras organizações que agem à margem da lei. É difícil mensurar o número de ônibus clandestinos em atuação no Brasil. Mesmo a ANTT e a Polícia Rodoviária Federal não se arriscam a fixar números oficiais. Estima-se que os clandestinos sejam responsáveis pelo transporte de 30% ou até um pouco mais do volume de passageiros que se deslocam por ônibus no País, principalmente nas rotas de médias e longas distâncias.
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Calcula-se que ao menos 45.000 pessoas por mês sejam transportadas em ônibus antigos, sem manutenção nem conservação, por conta de uma prática que não proporciona qualquer retorno ao poder público, apesar de usar espaços públicos como rodovias, avenidas e serviços médicos decorrentes dos acidentes — que no caso aliás são frequentes. O transporte clandestino não é perda apenas para quem usa esse meio de locomoção sem contar com qualquer garantia em caso de roubo, extravio de bagagem ou acidente. Também não é perda apenas para as empresas regulares de transporte, que pagam impostos, seguem as regras e mesmo assim são obrigadas a amargar a concorrência desleal. Perde todo o País, perdem inclusive os que não viajam de ônibus.
CARTELIZAÇÃO – Basta um passeio pelas ruas do Brás para ver que o mercado ilegal é enorme. As ruas Paulo Afonso e Joaquim Nabuco são as que mais concentram as agências mantidas pelos piratas. Todas lotadas de caixas e pacotes. Naquela primeira agência, onde o funcionário informou que seu patrão mantinha uns dez ônibus em atividade, o preço da passagem entre São Paulo e Caruaru-PE, era de R$ 150,00. Mas com uma ressalva: não dava mais para viajar na véspera do feriadão. O interessado teria de esperar que se completasse a lotação de outro ônibus, sem garantia de horário e dia fixos. No transporte pirata é assim: o dono do ônibus marca uma data e se o ônibus encher, a viagem é feita. Se não encher, paciência, o passageiro terá de continuar esperando.
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Um dos “dez ônibus do patrão” estava parado na frente da agência, estacionado na contramão, um Tribus, antigo, dos anos 1980, com chassi O-370 RSD. Os pneus estavam em mau estado, especialmente o do segundo eixo do lado esquerdo, já bastante careca. O que mais chamava a atenção no veículo era a lateral traseira, onde a área correspondente ao banheiro, ao invés de ser fechada pela lataria normal estava coberta com uma chapa de aço ondulado, tipo porta-de-loja. Era época de Natal, o segundo ônibus já tinha enchido e era a vez de o terceiro sair, mas o motorista não estava no local. Então, o quarto ônibus da fila pegou os passageiros e foi embora. Quando o motorista do terceiro ônibus descobriu que tinha sido ‘furado’, esperou o outro motorista voltar a São Paulo e o esfaqueou. As brigas eram constantes e eu acabei saindo, não tinha mais saúde para isso” – disse o ex-policial militar. Segundo ele, o motorista ferido sobreviveu. Mediante a cobrança de uma taxa, os donos das linhas e empresas clandestinas, além de contarem com suas próprias frotas, agregam ao serviço ônibus de terceiros. Prova de que o negócio é controlado por gente que movimenta somas de dar inveja a pequenas e médias empresas legalizadas. Isso foi constatado na última agência visitada, pertencente à TCB (Transportes Coletivos Brasil), também conhecida como Transbrasil.
A empresa já foi notificada várias vezes pela Justiça, não recolhe impostos e tem o porte de uma companhia legal. O atendente da agência, na Rua Paulo Afonso, revelou que muitas vezes a empresa apenas empresta o nome. “Há ônibus de muita gente aqui”, acrescentou. Todos sob um mesmo comando.
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BRECHAS JURÍDICAS – Transportadores que não operam dentro da lei, como a citada TCB, usam a própria lei para se garantirem. De acordo com um documento do setor de transportes rodoviários encaminhado à Agência Nacional de Transportes Terrestres, quando uma empresa dessas perde na Justiça em um Estado, trata de amparar-se em liminares (decisões provisórias) obtidas em outro Estado. O documento citado aponta casos concretos: “Com o objetivo de continuar a operar irregularmente, a Transbrasil ajuizou ações em diversos Estados do Brasil, e a cada improcedência, a empresa propõe nova ação em um outro Estado ou uma nova peça processual, desencadeando uma infinidade de recursos e decisões de toda ordem.
Neste cenário, a TCB perdeu as ações no Ceará, Alagoas, Rondônia e Bahia, e ainda possui decisões favoráveis no Paraná e no Distrito Federal. Em que pese o fato de operar por meio de decisões judiciais, esta condição não a exime de cumprir rigorosamente todas as exigências regulamentares para operação, posição confirmada pelo Supremo Tribunal Federal através da Suspensão de Tutela Antecipada nº 357, que na parte final da decisão exarada obrigou a empresa Transportes Coletivos Brasil Ltda. a submeter-se à fiscalização e às exigências da autarquia especial responsável pela regulação do setor.”
Quando os ônibus, tanto os da TCB como os “sem bandeira”, são parados no meio do caminho, não há brecha de lei que possa disfarçar a forma ilegal de atuação. Além do não pagamento da alta carga tributária a que as empresas regulares estão submetidas, e de não seguirem as normas de segurança, as clandestinas também não respeitam direitos trabalhistas. Trabalhando em veículos mal conservados e de difícil direção, os motoristas ainda acumulam jornadas de 12 horas ou mais, com poucos intervalos para descanso. A carga horária determinada por lei não é respeitada. Não bastassem as brechas entre liminares e petições em diferentes tribunais, muitas empresas conseguem autorização para circular como se fossem empresas de fretamento, embora, na verdade, vendam passagem por passagem ao invés de transportarem grupos fechados, como é característica do ônibus fretado.
Captura+de+tela+inteira+17072012+192220.bmpTODO MUNDO VÊ – Normalmente, se entende como clandestino algo ilegal, feito às ocultas, que por estar à margem da lei se procura esconder. Isso pode se aplicar a muitas atividades ilegais, mas não necessariamente ao transporte clandestino de passageiros. Se a fiscalização nas estradas é difícil, como afirma a Agência Nacional de Transportes Terrestres, todo mundo sabe de onde partem os ônibus. Em nota da assessoria de comunicação da ANTT, a Agência identificou as rotas mais comuns de ônibus clandestinos: “A maior incidência de transporte clandestino ocorre no eixo Sudeste–Norte/ Nordeste, tendo como principal foco de origem/destino os estados de São Paulo, Pernambuco, Maranhão, Piauí e Ceará.” Em São Paulo, a maior concentração desse tipo de transporte é no Brás, embora existam outros locais, como o Jabaquara, na zona sul da Capital paulista. Um levantamento mais completo, que consta do documento preparado por empresas regulares do setor enviado à ANTT, aponta que, em um ano, pelo menos 1.500 partidas foram realizadas no Brás.
Só no mês de maio de 2011 foram confirmadas, do Brás para o Nordeste, 71 partidas de ônibus clandestinos, operados por 13 empresas, que foram devidamente identificadas (inclusive com indicação das placas e cores das pinturas dos ônibus), todas nominalmente citadas nas sucessivas denúncias apresentadas à ANTT. Foram elas as empresas Catedral, Bartira, Transclemente Turismo, Vitor Vir, Alfredo Turismo, Ouro Branco, Neném Tur, Norte Sul, Princesa Turismo, Nininho Turismo, TCB, Nacional e Caneta. O Brás é o ponto de partida ou de chegada para uma infinidade de destinos no Norte e no Nordeste.
CONCORRÊNCIA DESLEAL – As informações fornecidas pela assessoria de comunicação da ANTT incluíram um balanço de fiscalizações em ônibus. Os números se referem a todos os ônibus fiscalizados nas estradas brasileiras, mas a Agência não faz distinção entre empresas regulares e clandestinas. Funcionários de empresas interestaduais que operam no Terminal Tietê criticam a postura da ANTT nesse aspecto. Consideram perfeitamente correta a atuação da Agência no que diz respeito às empresas regulares, que são fiscalizadas de maneira permanente e minuciosa, mas observam que isso não ocorre com as empresas e agências que operam o transporte pirata. Um desses funcionários, L. C. E., garante que se a ANTT fiscalizasse com o mesmo rigor as agências e empresas de transporte pirata que atuam no Brás e em mais 12 pontos da Capital, em muito pouco tempo estaria quebrada a espinha da cadeia de ilegalidade que caracteriza esse sistema. 
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De acordo com o balanço da ANTT, em 2010 foram fiscalizados 24.717 veículos, sendo lavrados 11.501 autos de infração e realizados 767 transbordos. Em 2011, até maio, a Agência fiscalizou 4.525 veículos e, juntamente com órgãos conveniados, lavrou 2.999 autos de infração, além de realizar 103 transbordos. A desoneração fiscal sobre as empresas regulares seria uma das alternativas para o combate aos clandestinos. Uma tributação mais justa sobre o ônibus interestadual (que, por exemplo, paga ICMS, enquanto o avião está isento do imposto) viabilizaria um transporte regular mais competitivo. Por outro lado, e apesar de tudo, as pessoas têm consciência de que é perigoso andar em veículos sem manutenção e sem fiscalização. “Se o ônibus ‘de rodoviária’ fosse mais barato, eu ia nele. Os outros não são bons, mas fazer o quê?” — lamentou o pedreiro Jaciel, de 23 anos, que se preparava para embarcar em um ônibus pirata rumo à cidade de Santarém, Pará.
NÃO CUMPRIR A LEI É A LEI DOS CLANDESTINOS

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De acordo com o documento encaminhado pelo setor de transporte rodoviário de passageiros à ANTT, são várias as exigências legais e resoluções não cumpridas pelas empresas clandestinas. Alguns exemplos:
• Apresentação e atualização de esquemas operacionais das linhas operadas, nos termos do Título V da Resolução nº 18/02.
• Envio trimestral dos dados operacionais e balancetes, conforme a Resolução nº 248/03.
• Adoção do Plano de Contas Básico, conforme exige a Resolução nº
417/04.
• Comprovação da outorga do serviço e adesão ao contrato de permissão,
nos termos da Resolução nº 596/04.
• Cumprimento às disposições das Resoluções 653/2004 e 1.692/2006,
que impõem às empresas de transporte o atendimento à gratuidade e descontos no transporte de idosos, que não só é mandamento de lei, como
já fora ratificado pelo próprio STF.
• Cadastramento de frota operacional, na forma prevista pela Resolução
nº 839/05.
• Autorização da ANTT para utilização de frota de terceiros, consoante
Resolução nº 1.417/06.
• Registro dos motoristas com envio de certidões negativas para a ANTT,
nos termos da Resolução nº 1.971/07.